O governo brasileiro comunicou aos Estados Unidos que não pretende rotular facções criminosas atuantes no país, como o Comando Vermelho (CV) e o Primeiro Comando da Capital (PCC), como grupos terroristas. A justificativa apresentada é que a legislação nacional não ampara esse tipo de enquadramento e que já existem mecanismos mais eficazes para lidar com essas organizações criminosas.
A solicitação partiu de representantes do governo norte-americano em reunião com o Ministério da Justiça, realizada no início do mês em Brasília. O encontro ocorreu no contexto da intensificação das medidas contra a imigração ilegal promovida pelo presidente Donald Trump, que tem ampliado ações contra gangues latino-americanas como a Tren de Aragua, da Venezuela, e a MS-13, de El Salvador.
Fontes relataram que o diálogo foi conduzido de forma “respeitosa” e “direta”, mas que a posição brasileira foi deixada clara e com firmeza.
Segundo o secretário nacional de Segurança Pública, Mario Sarrubbo, as facções atuam como “empresas do crime”, com foco no lucro financeiro e sem vínculos ideológicos, religiosos ou raciais. Por isso, de acordo com ele, essas organizações não se enquadram na definição jurídica de terrorismo conforme o ordenamento brasileiro.
O que é considerado terrorismo?
No cenário internacional, não há um consenso absoluto sobre o conceito jurídico de terrorismo. Uma resolução da Assembleia Geral da ONU de 1994 condena como atos terroristas aqueles destinados a causar terror em populações ou grupos específicos, com fins políticos. Outra resolução, aprovada após os atentados de 11 de setembro de 2001, reforça essa definição, concentrando-se em ações contra civis que busquem gerar medo generalizado.
No entanto, cada país adota suas próprias definições, de acordo com seus contextos políticos e sociais, o que dificulta uma padronização global.
Legislação brasileira sobre terrorismo
No Brasil, o terrorismo é definido pela Lei nº 13.260/2016, aprovada ainda no governo Dilma Rousseff. A norma tipifica como terrorismo os atos cometidos com a intenção de causar terror generalizado ou social, pondo em risco a integridade pública, a segurança e o patrimônio. No entanto, acrescenta uma ressalva: o ato precisa ser motivado por xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia ou religião.
Esse ponto é o que sustenta a negativa do governo em classificar as facções como terroristas. Para Sarrubbo, essas organizações se assemelham mais a máfias, com estruturas altamente organizadas voltadas à obtenção de lucro. Ele revelou que o Ministério da Justiça está elaborando um projeto de Lei Antimáfia para endurecer a repressão ao crime organizado, com previsão de envio ao Congresso até junho.
Pressão externa e apoio interno
Os Estados Unidos, sob a liderança de Trump, têm intensificado os esforços globais contra o narcotráfico com viés terrorista. Durante a gestão anterior, do presidente Joe Biden, o Tesouro americano já havia imposto sanções a membros do PCC, alegando sua ampla atuação internacional.
Já no atual mandato de Trump, o Departamento de Estado norte-americano designou oficialmente diversos cartéis do narcotráfico como organizações terroristas internacionais.
No Brasil, a postura americana conta com apoio de parte do meio político. O governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro, chegou a visitar Nova York para tratar de segurança pública e apresentou um dossiê às autoridades dos EUA defendendo o reconhecimento do Comando Vermelho como grupo terrorista, segundo revelou o jornal O Globo.
Riscos e críticas de especialistas
O professor Thiago Moreira, cientista político e docente de Relações Internacionais da Universidade Federal Fluminense (UFF), alerta que tratar o crime organizado como terrorismo pode colocar em risco o Estado de Direito. Segundo ele, as facções buscam lucros, não promovem ideologias políticas ou religiosas, e sua atuação visa objetivos econômicos, mesmo quando se infiltram no poder público.
Para Moreira, confundir os dois conceitos abre espaço para abusos estatais e uso excessivo da força. Ele destaca o perigo de movimentos sociais serem confundidos com terroristas, como o MST, dependendo da inclinação ideológica de governos futuros.
Já o professor Gerson Faustino Rosa, especialista em Direito Penal da UniCuritiba e da Escola Superior da Polícia Civil do Paraná, critica o texto atual da Lei Antiterrorismo por exigir motivações como xenofobia ou racismo, o que, segundo ele, se aproxima mais do conceito de genocídio do que de terrorismo.
Rosa defende a criação de um novo tipo penal, com penas mais duras para atos que visem causar terror com finalidades políticas, o que permitiria uma aplicação mais abrangente da legislação.